Fanny e Stella: um caso que chocou a Inglaterra Vitoriana

29 de Abril de 1870: uma multidão excitada olha as duas damas sendo levadas para o tribunal na manhã de sua prisão no Teatro Strand.

29 de Abril de 1870: uma multidão excitada olha as duas damas sendo levadas para o tribunal na manhã de sua prisão no Teatro Strand.

Em 1870, duas jovens mulheres foram levadas para a Corte e acusadas do “crime abominável de sodomia”. Depois de uma noite nas celas, com perucas escorregando, ficou bastante claro para o tribunal lotado que as duas mulheres eram, na verdade, dois homens, chamados Ernest Boulton e Frederick Park. Para seus amigos, eles eram Stella e Fanny. E nos jornais, em que eles eram a primeira página, eram conhecidos como as Damas Ele-Ela (He-She Ladies). Cerca de mil pessoas se reuniram para vê-los serem levados para dentro da corte. Eles passaram quatro meses na prisão aguardando seu julgamento. Se considerados culpados, pegariam de dez anos a prisão perpétua.

Em 1870, a Grã-Bretanha estava com os nervos a flor da pele. O movimento republicano chegava ao ponto de inflexão, Darwin tinha virdo homens em bestas, e Paris estava em comuna. O mundo estava de cabeça para baixo, e a visão de dois homens vestidos como mulheres era a personificação da idéia de que as coisas estavam fora de comum. Uma forma de restaurar a ordem era colocar o sexo de volta em seus devidos lugares. Mas, curiosamente e sensacionalmente, os dois homens não foram autorizados a colorem roupas masculinas para irem à corte, e por isso surpreenderam: Boulton usava peruca com um coque trançado e um vestido colorido de seda, enfeitada com rendas brancas e pulseiras, enquanto Park, com sua peruca de cachos louros, usava um vestido de cetim verde escuro com decote baixo, enfeitado com laços pretos, um xale de renda preta e um par de luvas brancas.

O guarda-roupa de Stella e Fanny foi confiscado pela polícia. Na legenda da imagem, lê-se: “Homens vestindo roupas de mulheres”.

Na noite anterior, em 28 de Abril de 1870, os jovens tinham saído para a farra no Teatro Strand, usando roupas de mulheres. Mas esse não era o pior de seus crimes: personificar uma mulher em público era apenas um delito que poderia ser tratado com uma multa. O que importava para a corte era se os dois haviam transado. Isso, é claro, é difícil dizer: tanto é que ao longo do julgamento a promotoria não conseguiu provar que a sodomia tivesse acontecido, fosse entre os dois homens ou dentro do seu círculo de amigos – Fanny e Stella viviam separadamente, mas os dois e mais três outros homens tinham uma casa na Rua Wakefield, onde eles se vestiam para sair à noite e se hospedavam com amigos. A polícia fez um inventário: dezesseis vestidos em cetim ou seda com enfeites de laços, uma dúzia de anáguas, dez caps e casacos, meia dúzia de corpetes, vários gorros e chapéus, vinte chignons e uma variedade de meias, botas, luvas e maquiagens.

Boulton e Park interpretavam papéis femininos no teatro amador e legítimo. Fanny e Stella eram irmãs, e participaram de corridas de barco em Oxford e Cambridge. Eles também frequentavam teatros vestidos como homens, mas o fato de usarem maquiagem e piscarem ocasionalmente para cavalheiros respeitáveis atraiu a atenção da polícia.

Frederick Park (Fanny) tinha 22 anos, e Ernest Boulton (Stella) 21. Frederick era o caçula de uma família de 12 filhos, e filho do juíz Alexander Park. Seu irmão Harry já havia deixando a Inglaterra e ido para a Escócia após ter sido preso por delitos homossexuais. Já Ernest era o mais naturalmente bonito do par, e muito mais atraente em seu disfarce feminino: filho de um corretor de frete, Ernest estava determinado a ser um cantor até que seu pai o obrigou a entrar na carreira de banqueiro.

Com roupas masculinas, Lorde Arthur Pelham Clinton (sentado), Fanny (apoiada na cadeira) e Stella (no chão) posam para uma foto.

Com roupas masculinas, Lorde Arthur Pelham Clinton (sentado), Fanny (apoiada na cadeira) e Stella (no chão) posam para uma foto.

O caso nos tribunais em 1871 ficou ainda mais chocante quando Boulton disse na corte: “Eu sou Lady Clinton, esposa do Senhor Arthur”. Boulton estava se referindo a Lorde Arthur Pelham Clinton, filho do 3º Duque de Newcastle. Boulton mostrou o anel de casamento em seu dedo, assim como foram apresentados selos gravados com o nome “Stella” e cartões de visitas com os nomes “Lady Arthur Clinton”. Existiam ainda cartazes teatrais que provavam que Arthur e Boulton participaram juntos em peças de teatro. Infelizmente, Artur tinha morrido em 18 de Junho, pouco antes do caso chegar ao tribunal – acredita-se que ele tenha morrido pela escarlatina que foi agravada pela ansiedade, mas também acredita-se em suicídio.  Diversas cartas foram descobertas. Uma delas, dizia

Meu querido Arthur.
Eu acho que eu prefiro que você venha no meio da semana, pois acredito que eu estarei ocupada no sábado (15), em Londres, embora eu ainda não esteja certa. Se você vier na quarta-feira, poderemos ficar juntos até sábado de manhã (se você conseguir me aguentar tanto tempo), e todos nós podemos ir juntos – isso é, se eu for. Mas faça o que te agradar. Eu estou sempre em casa e imóvel. Ficarei contente em vê-lo tanto a qualquer momento. E a alça do meu guarda-chuva já foi consertada? Se assim for, gostaria que você gentilmente me enviasse, pois o clima se tornou tão chuvoso que eu não posso sair sem medo de que meu cabelo escorregue para trás. Deixe-me ouvir de você a qualquer momento. Estou sempre feliz em fazê-lo.

Sempre sua afetuosa, Fanny.

Eventualmente, e só depois de um segundo julgamento, e um ano depois, é que os homens foram declarados inocentes e permitidos a voltar para suas vidas teatrais.  O fato é que todas as evidências não apontavam para nada além de um comportamento vergonhoso. Tem sido argumentado que o júri não queria ou não conseguia compreender a existência de uma subcultura gay, ou que deliberadamente ficavam cegos para os fatos subversivos da vida. Todos os réus foram absolvidos. A mãe de Boulton, Mary Ann, também testemunhou e disse que não era nenhum segredo que seu filho era Stella e que ele gostava de se vestir como mulher.

Ernest Boulton (Stella) e Frederick Park (Fanny). Ernest era o mais naturalmente bonito.

A acusação também era fraca – eles foram acusados de conspiração com outras seis pessoas que fugiram, morreram ou sequer foram encontrados. Como observa Neil McKenna, que escreveu um livro sobre os dois, diz que é irônico que se eles tivessem sido acusados apenas de sodomia, um exame médico poderia ter provado que eles tinham praticado sexo e então eles teriam sido condenados.

Após o julgamento – que foi considerado o primeiro julgamento legal da Grã-Bretanha sobre homossexualidade, mas foi esquecido rapidamente – Frederick Parck foi para a América com seu irmão Harry e morreu em Nova Jersey em 1881. Ernest Boulton mudou seu nome para Ernest Byne, passou a usar perucas louras e viajou o mundo como mulher junto de seu irmão Gerard. Ele morreu na Inglaterra em 1903.

Traduzido e adaptado dos artigos:
Fanny and Stella: The Young Men Who Shocked Victorian England by Neil McKenna – review” por Kathryn Hughes;
Fanny and Stella“, de Rictor Norton;
Arrested for cross-dressing!Meet Fanny and Stella, the Victorian gentlemen charged with the ‘unnatural offence’ of being transvestites“, por Martha de Lacey.

8 Respostas para “Fanny e Stella: um caso que chocou a Inglaterra Vitoriana

  1. O mais interessante de toda essa história é que os dois foram considerados inocentes pela corte. Ainda no séc. XIX, a Inglaterra era um dos poucos lugares onde comportamento sexual fora da moral vigente não resultava, com certeza, em prisão ou morte. Como disse Thompson muito bem, a elite inglesa, ao se legitimar através da própria tradição legal, permitiu que as massas e os marginalizado fossem, lentamente, se apropriando deste sistema jurídico para seus próprios interesses.

    Curtir

  2. Interessante o julgamento do primeiro caso homossexual na Inglaterra, em meio a uma sociedade tão cheia de ” valores” , ainda foram inocentados, apesar das evidências…

    Curtir

  3. A justiça vitoriana sabia punir os marginais da época com severidade. Quaisquer desvios do moral vitoriana eram vistos como abominações e horrores. A normalidade regia o mundo e o “diferente” era expurgado e rechaçado como atrocidade. O Estado e sua moral eram fortes.

    Curtir

  4. A carta da Fanny foi tão fofa que quando li “Sempre sua afetuosa, Fanny” aspirei. Foi muito lindo. A pena é que Arthur faleceu (de alguma forma ) e ela acabou sem o marido.

    Curtir

Deixe um comentário